H á um lugar em mim onde o tempo jamais cicatriza. Um espaço silente, como um quarto sem janelas, onde a memória se impõe com a arrogância de um deus cruel. São lembranças que não pedem licença , apenas invadem ... como mãos frias e antigas, que um dia ousaram me tocar sem consentimento. O corpo, este invólucro exaurido, ainda carrega em sua carne os vestígios do que foi dilacerado. As asas . A h, aquelas asas! F oram arrancadas não em um gesto só, mas em cortes contínuos e cirúrgicos, desferidos por olhares vorazes e palavras disfarçadas de afeto. A pureza, essa flor tão frágil , foi esmagada em madrugadas insones, entre lençóis que me pertenciam. Hoje, sou a mulher que sobreviveu ao incêndio, mas ainda respira a fumaça. Ando pelas ruas com a dignidade de quem aprendeu a esconder as próprias feridas sob camadas de silêncio. Contudo, há dias em que os gatilhos vêm sorrateiros . N o timbre de uma voz, no toque acidental, no cheiro de um perfume qualquer ...