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Mostrando postagens de julho, 2025

Amianto

Hoje acordei com aquela estranha familiaridade da dor que não grita, apenas ocupa. Ela não vem como um trovão, não tem o espetáculo de uma tragédia anunciada. É mais como o amianto da canção: silencioso, letal, inevitável. Vai se infiltrando pelas frestas da pele, adentrando os ossos, até que já não sei se sou eu ou apenas a sombra do que um dia tentei ser. O sol atravessava a cortina com uma ousadia absurda, como se tivesse o direito de iluminar o que já não quer ser visto. E eu ali, com o corpo estendido na cama como quem jaz acordado, sem funeral, sem flores, sem adeus. É isso que me tornei: uma ausência em forma de gente, um nome na boca dos outros, uma presença que já não habita si mesma. Há dias em que penso na morte com uma ternura assustadora. Não como fim trágico, mas como alívio. Como um cobertor que, enfim, aquece o frio da existência. Mas não é só o desejo de morrer  é o cansaço de viver sem estar viva. As pessoas dizem: "Mas você tem tudo, tem saúde,...

Alvorada e crepúsculo

Havia um instante, tênue, quase inaudível, em que o clarão da manhã e o véu da noite se entrelaçavam num silêncio que falava mais do que qualquer palavra. Um sopro auroral, discreto e perfumado, surgia no horizonte como se um suspiro de promessa desabrochasse no espaço estelar. Era a dança das oposições, o encontro milagroso que, por breves instantes, suspendia o tempo e reverberava nas paisagens adormecidas.   Naquele momento suspenso, tudo se tornava encantamento suspenso. As sombras cintilavam em dourado opaco, semelhantes a veludo desfazendo-se no toque de uma claridade silente. As copas das árvores curvavam-se num gesto de reverência, e o orvalho, então desperto, reluzia como minúsculas testemunhas desse enlace etéreo. Era como se duas almas ancestrais, uma guardiã da escuridão e outra emissária da luz, resolvessem unir forças no portal da existência. Não havia confronto, apenas uma comunhão sagrada, colorindo o céu com gradientes de prata e âmbar. Havia esperança nessa disso...

O canto dos corvos

     Começou antes da linguagem. Antes do corpo entender que podia dizer não. Antes até da memória se formar. Veio como um toque. Não o que protege. O outro. O que fere sem rasgar a pele, mas vai apodrecendo por dentro.      Veio das mãos que juravam afeto. Das mãos que deveriam ter sido abrigo. Veio como cuidado disfarçado, como silêncio envenenado. Ela não sabia nomear, mas o corpo registrava. O medo entrava pelos olhos, escorria pelos ossos, fazia ninho no estômago. A menina aprendeu a sobreviver quieta. Como quem engole a própria presença pra não incomodar.      A dor foi crescendo com ela. Cresceu no vão das palavras não ditas, no espaço entre a violência e o disfarce. Cresceu enquanto diziam que era invenção, drama, exagero. E o que era verdade virou dúvida. E a dúvida virou culpa. E a culpa virou voz.      As vozes não chegaram de repente. Foram surgindo devagar, como quem já mora ali há muito tempo e só esperava ser not...

Empoeirado

     Ramtel desperta como quem rasga o ventre de um sonho antigo e empoeirado. Há séculos dormia dentro de si, submerso em águas paradas, esquecido até mesmo pelo próprio nome. Agora, erguendo-se do nevoeiro interno, encontra um silêncio que grita. Uma bolha de vazio pulsa em seu peito, cresce, expande-se, como se quisesse engolir tudo o que ele ainda é. Não há palavras para nomear esse abismo. É apenas uma sensação de estar em ruínas e respirar, mesmo assim.      Ele caminha, mas o caminho é tecido com fragmentos de memória. De longe, lampejos de luz se erguem, breves e frágeis como sopros de vela. Ele os segue, quase acreditando. Mas logo o céu fecha, o dia se encobre, e as promessas se desfazem em névoa. Ramtel já não sabe se persegue o sol ou se apenas corre atrás da ilusão do próprio calor.      Enquanto avança, é invadido por um peso que não tem forma: a ausência de si. Ramtel já não se reconhece no que faz, nem no que um dia sonhou s...