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Mostrando postagens de 2025

Entardecer

Há alguns meses, duas histórias começaram a se roçar nas bordas do tempo, como fios invisíveis que se reconhecem antes de se tocarem. Por escolha ou por destino, e talvez não haja diferença entre um e outro, cruzaram-se.   A Loba havia detido seu próprio tempo. Parou entre um suspiro e outro para observar o sol morrer pela enésima vez, num tom de laranja que só existe nos instantes em que o mundo parece lembrar de respirar. Ali, imersa no crepúsculo, ela percebeu não estar só. Havia outro ser, igualmente imóvel, absorvendo o mesmo instante, talvez pelo mesmo motivo: o cansaço do eterno.   Quando seus olhos se encontraram, algo na realidade vacilou. Ambas precisaram certificar-se de que não eram miragens, nem fragmentos de memórias quebradas. A princípio, tentaram sustentar o olhar, mas logo cederam e voltaram-se para o chão, como se o pôr do sol, agora, fosse menos intenso do que o que emergia dentro delas.   A presença da outra era um paradoxo em forma de carne e luz. Ca...

Companhia

As ruas transbordavam passos e vozes. Um oceano de pessoas avançava em direções múltiplas, cada rosto uma máscara, cada gesto uma partitura repetida. Eu caminhava entre el a s, tragada pelo fluxo, mas sentindo-me como pedra. Havia música vind o de algum lugar distante, vida se exibindo em excesso e em mim apenas um vazio que mastigava as margens da alma.   Por motivo algum a multidão me feria com sua abundância. Cada abraço alheio era navalha contra a pele, cada gargalhada me lembrava do silêncio interno que insistia “aqui” . Caminhava e, mesmo cercad a por centenas de vultos e sons , o vazio conturbado se fazia mais presente que nunca, como uma fera que acompanha de perto a presa e não a deixa respirar.   E foi então que a percebi. Encostada no corredor lateral de um préd io antigo, meio submersa na penumbra. Seus olhos não riam, não pediam nada, não prometiam conforto. Apenas observavam. Havia uma quietude nela que parecia me reconhecer, como se também carregasse de...

Fragmento ou reconstrução

A noite se fechava como um véu pesado sobre a pele do mundo. Havia silêncio, mas não era paz. Era o eco sufocado das batalhas que consumiram Kasyade , Calíope e Ramtel . Não houve sangue que manchasse o chão, mas houve estilhaços na alma, ruídos invisíveis de um confronto que não se vence e tampouco se esquece. Eles não se romperam diante dos olhos. Eles se dissolveram por dentro, como vidro partido que ainda reflete a luz, mas já não tem forma.   Ninguém sabe se deixaram de existir ou se apenas se reinventaram em algo que não conseguimos nomear. A verdade é que daquilo que restou, não emergiu clareza, mas um breu tão súbito que parecia engolir o próprio entendimento. Foi como se a consciência tivesse sido apagada de forma brutal, deixando no ar a pausa incômoda de um tempo que segura o fôlego antes de devolver a vida. E então, dessa escuridão compacta, algo começou a pulsar.  Não tinha forma, não tinha contorno, era presença pura. Não vinha caminhando com passos que os ouvido...

Amianto

Hoje acordei com aquela estranha familiaridade da dor que não grita, apenas ocupa. Ela não vem como um trovão, não tem o espetáculo de uma tragédia anunciada. É mais como o amianto da canção: silencioso, letal, inevitável. Vai se infiltrando pelas frestas da pele, adentrando os ossos, até que já não sei se sou eu ou apenas a sombra do que um dia tentei ser. O sol atravessava a cortina com uma ousadia absurda, como se tivesse o direito de iluminar o que já não quer ser visto. E eu ali, com o corpo estendido na cama como quem jaz acordado, sem funeral, sem flores, sem adeus. É isso que me tornei: uma ausência em forma de gente, um nome na boca dos outros, uma presença que já não habita si mesma. Há dias em que penso na morte com uma ternura assustadora. Não como fim trágico, mas como alívio. Como um cobertor que, enfim, aquece o frio da existência. Mas não é só o desejo de morrer  é o cansaço de viver sem estar viva. As pessoas dizem: "Mas você tem tudo, tem saúde,...

Alvorada e crepúsculo

Havia um instante, tênue, quase inaudível, em que o clarão da manhã e o véu da noite se entrelaçavam num silêncio que falava mais do que qualquer palavra. Um sopro auroral, discreto e perfumado, surgia no horizonte como se um suspiro de promessa desabrochasse no espaço estelar. Era a dança das oposições, o encontro milagroso que, por breves instantes, suspendia o tempo e reverberava nas paisagens adormecidas.   Naquele momento suspenso, tudo se tornava encantamento suspenso. As sombras cintilavam em dourado opaco, semelhantes a veludo desfazendo-se no toque de uma claridade silente. As copas das árvores curvavam-se num gesto de reverência, e o orvalho, então desperto, reluzia como minúsculas testemunhas desse enlace etéreo. Era como se duas almas ancestrais, uma guardiã da escuridão e outra emissária da luz, resolvessem unir forças no portal da existência. Não havia confronto, apenas uma comunhão sagrada, colorindo o céu com gradientes de prata e âmbar. Havia esperança nessa disso...

O canto dos corvos

     Começou antes da linguagem. Antes do corpo entender que podia dizer não. Antes até da memória se formar. Veio como um toque. Não o que protege. O outro. O que fere sem rasgar a pele, mas vai apodrecendo por dentro.      Veio das mãos que juravam afeto. Das mãos que deveriam ter sido abrigo. Veio como cuidado disfarçado, como silêncio envenenado. Ela não sabia nomear, mas o corpo registrava. O medo entrava pelos olhos, escorria pelos ossos, fazia ninho no estômago. A menina aprendeu a sobreviver quieta. Como quem engole a própria presença pra não incomodar.      A dor foi crescendo com ela. Cresceu no vão das palavras não ditas, no espaço entre a violência e o disfarce. Cresceu enquanto diziam que era invenção, drama, exagero. E o que era verdade virou dúvida. E a dúvida virou culpa. E a culpa virou voz.      As vozes não chegaram de repente. Foram surgindo devagar, como quem já mora ali há muito tempo e só esperava ser not...

Empoeirado

     Ramtel desperta como quem rasga o ventre de um sonho antigo e empoeirado. Há séculos dormia dentro de si, submerso em águas paradas, esquecido até mesmo pelo próprio nome. Agora, erguendo-se do nevoeiro interno, encontra um silêncio que grita. Uma bolha de vazio pulsa em seu peito, cresce, expande-se, como se quisesse engolir tudo o que ele ainda é. Não há palavras para nomear esse abismo. É apenas uma sensação de estar em ruínas e respirar, mesmo assim.      Ele caminha, mas o caminho é tecido com fragmentos de memória. De longe, lampejos de luz se erguem, breves e frágeis como sopros de vela. Ele os segue, quase acreditando. Mas logo o céu fecha, o dia se encobre, e as promessas se desfazem em névoa. Ramtel já não sabe se persegue o sol ou se apenas corre atrás da ilusão do próprio calor.      Enquanto avança, é invadido por um peso que não tem forma: a ausência de si. Ramtel já não se reconhece no que faz, nem no que um dia sonhou s...

Da ruína feita de carne

  H á um lugar em mim onde o tempo jamais cicatriza. Um espaço silente, como um quarto sem janelas, onde a memória se impõe com a arrogância de um deus cruel. São lembranças que não pedem licença , apenas invadem ... como mãos frias e antigas, que um dia ousaram me tocar sem consentimento.   O corpo, este invólucro exaurido, ainda carrega em sua carne os vestígios do que foi dilacerado. As asas . A h, aquelas asas!  F oram arrancadas não em um gesto só, mas em cortes contínuos e cirúrgicos, desferidos por olhares vorazes e palavras disfarçadas de afeto. A pureza, essa flor tão frágil , foi esmagada em madrugadas insones, entre lençóis que me pertenciam.   Hoje, sou a mulher que sobreviveu ao incêndio, mas ainda respira a fumaça. Ando pelas ruas com a dignidade de quem aprendeu a esconder as próprias feridas sob camadas de silêncio. Contudo, há dias em que os gatilhos vêm sorrateiros . N o timbre de uma voz, no toque acidental, no cheiro de um perfume qualquer ...

A espiral de Calíope

  C alíope já não sabia se o que sentia era cansaço ou desistência. Talvez fossem ambos, dissolvidos em um mesmo corpo que se arrastava pelas manhãs como quem percorre os escombros de uma guerra que nunca termina. A cabeça pesava. O mundo girava ao contrário dentro dela. As palavras se perdiam antes mesmo de virarem som, como se o pensamento nascesse já gasto, já exausto, já sem vontade de existir.   Havia algo estranho em acordar. Como se o simples ato de abrir os olhos fosse um esforço desnecessário... uma afronta à dor. Porque era sempre ela, a dor. Silenciosa, insistente, infiltrando-se pelas frestas dos dias. Não uma dor qualquer, não uma ferida visível, mas aquela que escorre pelos corredores da mente, que se esconde nas palavras não ditas, que grita nas pausas.   O cérebro de Calíope era um moinho enlouquecido, moendo lembranças velhas como se fossem alimento. O passado circulava ali como sangue amargo, como se o tempo tivesse se recusado a passar. E talvez tivesse...