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Entardecer

Há alguns meses, duas histórias começaram a se roçar nas bordas do tempo, como fios invisíveis que se reconhecem antes de se tocarem. Por escolha ou por destino, e talvez não haja diferença entre um e outro, cruzaram-se. 

A Loba havia detido seu próprio tempo. Parou entre um suspiro e outro para observar o sol morrer pela enésima vez, num tom de laranja que só existe nos instantes em que o mundo parece lembrar de respirar. Ali, imersa no crepúsculo, ela percebeu não estar só. Havia outro ser, igualmente imóvel, absorvendo o mesmo instante, talvez pelo mesmo motivo: o cansaço do eterno. 

Quando seus olhos se encontraram, algo na realidade vacilou. Ambas precisaram certificar-se de que não eram miragens, nem fragmentos de memórias quebradas. A princípio, tentaram sustentar o olhar, mas logo cederam e voltaram-se para o chão, como se o pôr do sol, agora, fosse menos intenso do que o que emergia dentro delas. 

A presença da outra era um paradoxo em forma de carne e luz. Carismática, de cabelos escuros com reflexos coloridos que pareciam reter as últimas chamas do dia, tinha uma beleza que não se encaixava nas molduras do humano, nem tampouco nas do divino. Havia nela uma simetria ferida, uma graça torta, um ar angelical sem ser puro. Lutava contra a própria sombra e, ainda assim, temia os medos pequenos, os humanos, aqueles que corroem devagar. Sua presença impunha respeito, mas o toque invisível que deixava no ar transmitia calma, uma serenidade que não nascia da paz, mas do exílio. 

A Loba, em silêncio, entendeu que aquilo que via diante de si não era totalmente humano. Sentiu, num reflexo instintivo, que compartilhavam o mesmo tipo de maldição: a de pertencer a dois mundos e não caber em nenhum. 

O silêncio foi quebrado por algo quase banal, palavras sobre jogos virtuais, risadas contidas que tentavam disfarçar a curiosidade mútua. O ar ao redor tinha um perfume adocicado, talvez flor de laranjeira, talvez lembrança antiga de infância. Mas havia também a maresia discreta do fim de tarde, um gosto de sal que se misturava à luz moribunda do sol. Cada respiração trazia consigo a sensação de estar num limiar: entre o sagrado e o profano, o sonho e o corpo. 

Conversaram por horas. As palavras se entrelaçavam como ondas: ora se afastavam, ora se chocavam. A noite se insinuava e o relógio do mundo parecia hesitar. Quando o céu escureceu por completo, a garota quis se retirar. Não por compromisso, mas por medo. Medo de ficar, de gostar, de se permitir algo que o coração prometera evitar. A Loba compreendeu, pois conhecia aquele tipo de medo. O amor, para algumas criaturas, é uma ruína disfarçada de salvação. 

E foi então, entre hesitação e coragem, que os olhares finalmente se tocaram. Não apenas se cruzaram, mas tocaram-se como duas almas que reconhecem a própria falta na presença da outra. Por um breve instante, o peso do mundo dissolveu-se. Os murmúrios internos cessaram. As horas se desfizeram. 

Quando as mãos se encontraram, algo se rasgou entre o real e o impossível. 
A mulher, a não inteiramente humana, abriu um par de asas que pareciam feitas de aurora e de abismo. As penas mudavam conforme a luz: branco, preto, azul. Eram belas, mas carregavam cicatrizes. Algumas penas quebradas, outras queimadas. Marcas de quedas antigas, tentativas frustradas de voo. Cada ferida parecia contar uma história de quando ousou subir alto demais, ou amar fundo demais. 

O susto foi inevitável. Ela recuou, quase implorando que o céu a devolvesse à sombra. Disse que aquilo não costumava acontecer, que as asas não se abriam mais, que não deveriam ter se aberto. 

Mas já era tarde. O entardecer havia terminado, e o que ficava ali não era nem dia, nem noite. Era o intervalo em que os Nephilim lembram quem são. 

E naquele breve interstício, duas criaturas que o tempo esquecera provaram, ainda que por um instante, o que é pertencer e ser visto. 


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