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Reviver, moça.

   Acordei... Estou deitada em uma cama macia e cheirosa. Não é meu quarto nem são minhas coisas. Não sei onde estou, seja com qual "eu" esteja conversando agora. Preciso sair daqui e ir para casa mas sequer sei onde é "aqui". Então saio do quarto e vejo que aparentemente a casa está vazia e com cheiro de limpeza, mas não o cheiro bom e sim o cheiro forte de alvejante pelas paredes com azulejos impecavelmente brancos. Sigo pelo corredor com piso escuro de parquê e alguns quadros pendurados que faziam com que aquilo parecesse infinito e cada vez mais escuro. 
    Chego ao final do corredor e vejo o que parece ser um quarto, a porta entreaberta com uma claridade que, após aqueles segundos infinitos de escuridão, parecia cegar-me. "Ahn... Oi! Eu queria, sabe... Saber onde estou pois acordei agora e realmente não lembro onde estou. Desculpe, tu és irmã ou mãe de quem? Devo ter ido a uma festa, mas... Desculpe novamente, não lembro de nada"... Silêncio... "Oi? A senhora está me ouvindo? Sério, preciso ir para casa". Não obtive resposta. Acho que ela estava de mau humor ou algo assim. Saí do quarto claro e, ao sair torcendo para que o corredor não parecesse tão infinito, olhei para o lado e vi que havia uma sala de estar com poltronas, sabe? Aquelas iguais às que meu avô tinha e depois deixou conosco quando faleceu. Eram realmente muito parecidas e resolvi chegar mais perto. Era marrom com cinza, estilo veludo e com um porta copos improvisado. Igualzinho.
    A mulher do quarto claro vem até a sala como se finalmente tivesse entendido que eu queria conversar e sair de lá. Já era hora. Achei até que levaria uma bronca por estar andando assim na casa dos outros, mas poxa... perguntei antes. Ela foi à janela como se estivesse à espera de alguém. Passou por mim. Literalmente por mim. O que foi isso? O que... Minha cabeça... E de repente olho para minhas mãos e vejo tanto sangue, um rasgo na minha camisa e a sensação de afogamento. O vermelho escuro da dor é a tintura do desespero. Preciso pegar algo para estancar isso de uma vez. O jornal! "28 de novembro de 2014"

    (28 de novembro de 1994) "Adolescente dirige embriagada briga com a família e morre em acidente de carro. Irmã de sete anos fica ferida"

Comentários

  1. Muito bom! Nunca pare de escrever.. Muitas coisas que tu escreve me fazem pensar duas vezes

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