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Não sinto.

   Ouço um carro passando pelo asfalto irregular da rua e penso ser tu. Uma pessoa passando pela calçada, mesmo que do outro lado da rua, também penso que é tu chegando com um pão quentinho no final do dia. Até mesmo quando toca o telefone eu olho para a tela na esperança de que pudesse ser tu ligando.
      De qualquer forma, tento não pensar em ti. Fracasso. É exatamente o que estou fazendo agora. E enquanto eu continuar pensando em não pensar, tentando não lembrar ou fazendo qualquer esforço para te esquecer, não esquecerei. É tênue a linha entre o amor e o ódio, porém nem tanto entre o amor e o esquecimento, a memória, o passado, o fim.

     Não sinto falta de nada que tenha a ver contigo. Não sinto falta das manhãs sonolentas, nem sequer das risadas e das brincadeiras de lutinha. Não sinto falta do teu cheiro, do teu toque, do som esquisito da tua voz. Já esqueci tudo isso. Assim como também não sinto falta das segundas à tarde de fuga em que encontrava calma e tranquilidade na tua cama. Falta? Jamais.
     Não lembro de nenhum encontro nosso, nem do primeiro, muito menos do ultimo. Não lembro dos finais de semana, das férias, da praia, do acampamento, do sono, da tua respiração irregular, do teu olhar quando está apaixonada. Não lembro de nada disso.
Não lembro da na verdade é de não lembrar. Pois o que eu mais tento lembrar é não lembrar e sigo te depositando cada dia mais em mim.

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