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Crisálida



Naquela noite reparei no brilho dos olhos dela. Estava mais radiante do que o comum, e eu pude reparar. Ah, reparar! Suspiro ou exclamação mesmo? De qualquer forma, que palavra engraçada. Conseguiu soar talvez como um conserto ou uma manutenção, mas não, era apenas a simples percepção que não andava tão aguçada assim. É, sério... de te notar ou a falta de habilidade com as palavras? Fica o questionamento no ar. Enfim, voltando. Seus olhos estavam cintilantes, brilhantes, grandes e com as pupilas fixas em minha direção.

A expressão e corpo pareciam calmos e pacíficos como jamais havia visto. Se bem que posso não ter notado nas outras vezes, se houveram. Pensei "cá com meus botões" como tu mesma sempre dizia: Devo estar apaixonada, ou quem sabe, usei algum entorpecente (diga-se de passagem, que não) cheia de razões e de questionamentos as frases terminam com pontos finais por aqui. O resto do dia foi silencioso e ela exerceu as atividades normalmente, "viveu" normalmente como em qualquer dia comum. Afinal, era um dia comum. Quer saber o motivo deste viver ser posto em evidência nas aspas? Pois... descobri que ela na verdade nunca viveu, nunca sequer foi feliz e se foi, não houveram tantos momentos assim. Em números? 70% (setenta por cento) para não. Aquele brilho nos olhos se chamava liberdade e ela só conheceu quando descobriu que deveria partir. Partir daqui e conhecer novas sensações, ou, quem sabe apenas partir. Então partiu...

O ato dela deve ser julgado? Quem sabe?! Quem sabe o quanto vale uma vida ou a falta de valor dela perante o mundo? As vezes os problemas são maiores do que nós mesmos e do que a grandeza de algum Deus ao qual as pessoas se apoiam. Sem entrar em discussões, nada além dos próprios conflitos internos, que já são tantos, ele apenas decidiu ir. Sem perdão nem piedade. Sem medo e nem vaidade. Cuidadosamente foi. Não, ela não queria isso... apenas queria se desprender de algo que não tinha volta. Algo que ela perdeu assim que descobriu o quanto o ar era rarefeito. Ela partiu. Saiu do ovo, virou larva, não passava de crisálida. E decidiu ir. Voou a borboleta adulta.  Ela partiu... O casulo ao meio para poder viver a vida sem amarras.

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