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Quinze, zero e sete.

    Passei os últimos dias sentado diante das recordações e lembranças do que eu poderia ter sido. Novas mensagens e chamadas não atendidas refletiam o interesse alheio em minha integridade? Não. Era apenas o controle remoto travado no modo de "fingir não contradizer as obrigações parentais". Poderia ter sido diferente, assim como várias outras coisas da vida. Porém ao longo dos anos é perceptível que caminhos traçados e escolhas feitas nos levam onde estamos e por pior que estejamos sei que ainda há um ponto bom, uma lição ou um alguém que vá fazer com que as sombras sejam vistas como lírios nas manhãs de ventania. 
    Nesses anos sentada também vi que poderia nascer de novo todos os dias e crescer cada vez mais até que não coubesse mais um eu dentro de mim e devesse realmente separar esse "eu" tão bom. Até daria o nome de Pedro. Quaisquer que sejam as dores, uma perspectiva positiva teria valido a pena naquele momento. Teria.
    Adormeci... E todas as noites de sono eram realmente perturbadoras. As lembranças dolorosas exaltavam o fervor de uma mente psicótica todos os dias, porém esta foi a primeira vez em anos que a noite tornou-se tão agradável quanto os passeios pelos campos cobertos de margaridas, cravos e girassois. Sonhos com a paz e a sensação de estar no lugar certo, sabe? Distante de qualquer realidade que aponta os dedos e das paredes que sismam em aguçar meus elos com o medo. É uma pena que, como qualquer outro sonho, tenhamos que acordar e encarar o dia. Eis que as dores vieram, as marcas voltaram, a cabeça doeu e a visão estremeceu com as pancadas. Realmente lembro que tu disseste para eu bater nas paredes ao invés de quebrar as coisas da casa. Sabe, eu entendi mas acontece que além das fraturas externas, aqui dentro já não há mais nada para que palavras duras e falta de esperança na tua prole possam destruir.
    Passaram os dias e resolvi que não sentaria mais ali. A cadeira foi quebrada mas não fui eu, juro... Acho que anda meio dificil ser agradável e ser realmente o que tu sonhou. Afinal, criaste um anjo ou um demônio? É, só não esquece-te que o demônio é baseado na imagem do criador.
    Almejo o dia de ouvir ser teu orgulho ou quem sabe o dia de poder ser simplesmente o meu orgulho por não precisar arcar com as consequências de querer viver e ousar espalhar o perfume das frases por telas e páginas. Mas ao menos sabes disso? Não.
    Mas acontece que resolvi tentar sonhar novamente e conseguir iluminar minhas próprias ações. Onde estaria se o passado fosse diferente? Qual a percepção de mundo seria cabível? Ramtel não soube o que fazer e acordou como um anjo caído, mal lembrava de sua irmã. Ninguém sabe, é simples. O dia de amanhã vem independente da causa ou circunstância que te fez chegar aqui. Cabe ou coube que pudesse ser de tal forma e o julgamento da condição é livre. Todos os julgamentos são livres.

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