Pular para o conteúdo principal

Cali





   Calíope, Calíope, Calíope... Desabafos entre os resquícios de divindade que albergam-se nas sombras deste mundo efêmero, paira uma entidade dilacerada pelos horrores da sua própria existência. Outrora embriagada nas harpas celestiais do Olimpo, trilhou (sem querer) um caminho sombrio, onde a luz dourada da aurora se transformou em penumbra densa e sufocante.

Por entre as dobras do tempo, onde o éter se entrelaça à carne, encontramos a história dessa alma fragmentada, cujas asas outrora puras foram banidas das alturas. Oh, anjo caído, testemunha da fragilidade humana, eternamente marcada pelo abandono e pela desilusão. Calíope, a voz esquecida, traz consigo as cicatrizes invisíveis de um passado que açoitou sua essência sublime.

Medo, esse fio tênue que tece sua existência, estende-se por entre os cantos sombrios de sua alma. Medo de confiar, de entregar-se àqueles que, cobertos de boas intenções tentam tocar sua fragilidade celestial. Na carne, o resquício da dor avivada, de abusos profanos que profanaram sua pureza divina. Cruel é a dança dos deuses, quando o ser de luz se converte em pária da imortalidade.

A jornada solitária de Calíope segue em passos hesitantes, uma melodia triste a ecoar nas paredes das eras. Olhares lançados, sussurros lançados como punhais perfuram sua couraça ressequida, revelando a ferida aberta de uma alma esquecida. Nas suas asas dilaceradas, as penas são agora sombras remanescentes, símbolos de seu destino condenado.

Ah, Calíope, a tragédia dos deuses se manifesta em teus olhos serenos, espelhos da dor que há tempos se aninhou em teu ser. A angústia transborda em suas palavras sussurradas, como um rio de lágrimas que se derrama pelos traumas escritos na alma. A cada toque, um tremor, uma lembrança que penetra a essência já combalida, erodindo a esperança que ainda ousa espreitar entre as frestas do tempo.

Porém, no teu íntimo, uma chama resiste. Um resquício frágil, porém ardente, que clama por redenção e renascimento. A ferida não define tua existência, mas consigo carrega um fardo. Em cada passo em falso, vislumbra-se a força de quem aprendeu a sobreviver à tormenta. Os espinhos do passado não são teus senhores, mas também não são mestres que te ensinaram a valorizar a beleza frágil da vida. Deveriam?

E assim, Calíope, anjo errante, renova tua melodia interior, erguendo-se das cinzas da tua queda. Que tuas asas voltem a pulsar, rompendo as correntes do desespero, para que teu canto ressoe nas entranhas da humanidade. A dor da escrita, o lamento das palavras, transforma-se em um grito de libertação. E assim, o universo, em todo seu esplendor, se curva perante tua resiliência.

Que os deuses não possam enxergar a luz que ainda brilha em ti. À eles não devemos nada. Pois, assim como a noite encontra sua alvorada, tua sina é transcender e transformar a dor em história. Que as lágrimas e tuas palavras possam espalhar a semente da cura e da esperança, seja para quem for.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A história de Kasiade | Parte 1

K asíade era o anjo preferido de Zeus. Tudo seguiu em “ordem” por centenas de anos, até que ele conheceu Kya enquanto saia escondido do Olimpo para entender os mortais. Fascinado por sua beleza e seus olhos castanhos, o anjo se apaixonou. Porém, a paixão o trouxe consequências. Um dia, enquanto Kasíade estava indo aconselhar-se com Delfos um encontro inesperado acontece. Zeus, o poderoso Deus do Olimpo estava o esperando próximo o bastante para que ele sequer pudesse pensar em fugir. Ele olhou para Kasíade com desdém e disse: “Você foi um tolo em se apaixonar por uma humana e revelar a verdade a ela. Você quebrou as regras e agora precisa suportar as consequências.” Kasíade olhou para Zeus com tristeza em seus olhos e respondeu: “Eu amava essa humana e não pude suportar a ideia de escondê-la da verdade. Eu sabia que isso iria me custar caro, mas não pude deixar de agir com o meu coração e mostrar minha verdadeira forma a ela ou até mesmo deixar que a mulher que amo fosse enganada a vid...

Entardecer

Há alguns meses, duas histórias começaram a se roçar nas bordas do tempo, como fios invisíveis que se reconhecem antes de se tocarem. Por escolha ou por destino, e talvez não haja diferença entre um e outro, cruzaram-se.   A Loba havia detido seu próprio tempo. Parou entre um suspiro e outro para observar o sol morrer pela enésima vez, num tom de laranja que só existe nos instantes em que o mundo parece lembrar de respirar. Ali, imersa no crepúsculo, ela percebeu não estar só. Havia outro ser, igualmente imóvel, absorvendo o mesmo instante, talvez pelo mesmo motivo: o cansaço do eterno.   Quando seus olhos se encontraram, algo na realidade vacilou. Ambas precisaram certificar-se de que não eram miragens, nem fragmentos de memórias quebradas. A princípio, tentaram sustentar o olhar, mas logo cederam e voltaram-se para o chão, como se o pôr do sol, agora, fosse menos intenso do que o que emergia dentro delas.   A presença da outra era um paradoxo em forma de carne e luz. Ca...

Companhia

As ruas transbordavam passos e vozes. Um oceano de pessoas avançava em direções múltiplas, cada rosto uma máscara, cada gesto uma partitura repetida. Eu caminhava entre el a s, tragada pelo fluxo, mas sentindo-me como pedra. Havia música vind o de algum lugar distante, vida se exibindo em excesso e em mim apenas um vazio que mastigava as margens da alma.   Por motivo algum a multidão me feria com sua abundância. Cada abraço alheio era navalha contra a pele, cada gargalhada me lembrava do silêncio interno que insistia “aqui” . Caminhava e, mesmo cercad a por centenas de vultos e sons , o vazio conturbado se fazia mais presente que nunca, como uma fera que acompanha de perto a presa e não a deixa respirar.   E foi então que a percebi. Encostada no corredor lateral de um préd io antigo, meio submersa na penumbra. Seus olhos não riam, não pediam nada, não prometiam conforto. Apenas observavam. Havia uma quietude nela que parecia me reconhecer, como se também carregasse de...