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Vinte e quatro horas.

Contabilizei os mortos e foram sete ao total. A bagunça foi tanta que naquela noite sequer recordo de metade da história. Mas podemos começar de onde lembro... Então comecemos pelo princípio e que caia sobre nós o dilúvio das verdades que nunca foram ditas! Ah, a bagunça sentimental era vomitada após todas as refeições e o escroto impresso no final do dia com marcas de sangue nas paredes e até aquelas fotos reveladas do maldito passado que qualquer um negaria ter: o meu.
          Vinte e quatro horas antes estava tudo bem, mas é sempre assim. A magoa, dúvida, dor e a confusão podem ter gerado tudo isso mas preciso ser sincera e dizer que não sei quais eram os pensamentos no momento. Parecia uma briga. Meus punhos ardiam por alguns socos e sangue seco estava espalhado, mas nunca era intenção realizar isso. Tenho cinco segundos para pensar e usei três para agir. Para destruir, destroçar e desesperar os olhos de um amor que deveria fugir. E disse: Deves fugir enquanto pode, pequena. É destrutivo, como o ciclo das flores, meu bem. Ela não ouviu.

    Vinte e três horas depois, lá estavam os corpos no chão. Em sessenta minutos transformei-me em algo do qual nunca sequer cheguei perto. Mentira. Sempre esteve aqui mas sempre foi contigo. Como um tapa vieram as provocações e a raiva subiu à cabeça em forma de calafrio que ia desde a nuca até a ponta dos pés. Pena que era raiva e não um calafrio. Era o monstro que toma conta de mim e fortes são os que não fogem, ou apenas burros. Quem sabe fracos o bastante para ainda estar aqui? O problema é não saber o que aconteceu nestes sessenta minutos. Carrego-lhes à fogueira mais próxima para que permaneça sobre mim a culpa de delitos inconsequentes. Tomadas sejam as devidas precauções: não me irritem e não haverá mais fins inconsequentes... até, bom... pelo menos por enquanto.

Então eu preferi fugir após ler seu diário, Ramtel. Quem sabe nossas diferenças se baseiem em coincidências?

Comentários

  1. A loucura e a lucidez são, num tão óbvio quanto desastroso equívoco humano, apenas uma questão de minoria e maioria.
    GK

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    1. Exato, GK. Além do mais, somos todos contidos dentro de nossas mentes.

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