Fragmentado
Ramtel e Kasyade fizeram-me companhia durante essa semana. Foram dias difíceis, pra não dizer torturantes. Soube que Kasyade não estava bem também quando Ramtel enviou uma mensagem às quatro da manhã perguntando se podíamos conversar pela manhã. Ah, ele aprendeu a usar o celular, finalmente. E quando conversamos percebi que naquela voz doce de sempre estava escondido um medo que tornava seu timbre trêmulo. Era o medo de perder Kasyade. Mas anjos, mesmo os caídos... morrem? Talvez não fosse esse o problema, mas quando pensei na possibilidade de perdê-lo entendi o medo que Ramtel sentia e o motivo daquela conversa às sete horas da manhã.
-Eu não enxergo mais o brilho nos olhos dele. É meu melhor amigo, meu braço direito e a melhor parte de mim. Eu deveria ser quem poderia ajudar, mas me sinto de mãos atadas e a aura dele desaparece um pouco a cada passo que ele dá. É isso que eu sinto. Terminou ele, piscando e cerrando os olhos para que as lágrimas não escorressem.
Eu sabia que precisava ajudar, mas me senti impotente. Queria entender a situação, mas não sabia o que perguntar e nem como perguntar. Os pensamentos passavam rápidos e tudo parecia acelerado no ritmo dos meus batimentos cardíacos. Me sentia culpada. Mas eu nunca tinha contado sobre isso pra Ramtel nem para ninguém. Como contaria agora que a culpa era toda minha?
-Onde ele tá agora? Foi a única coisa que consegui perguntar.
-Depende, qual parte? Prontamente ele respondeu.
Tentei não expressar nada. Puta que pariu. Será que ele sabia? É obvio que ele sabia. Olha o que ele disse. Mas segui me mantendo calada.
Eu sei que não deu pra entender nada.
Quem conhece Kasyade e Ramtel sabe que sem eles eu não sou nada. Mas Ramtel estava frente a frente e demonstrando que sabia de toda a história. Ele sabia?
Kasyade, assim como Ramtel, é um anjo caído e eu já contei a história deles. Ramtel é forte, imponente, incrível e é o melhor amigo que qualquer pessoa poderia ter, independente de Deus discordar. Ramtel chegou aqui sem entender nada sobre os mortais, mas ele nunca deixou que a maldade do mundo mortal mudasse a essência literalmente angelical dele. Kasyade sempre foi um anjo diferente, mesmo antes de tornar-se mortal por uma maldita paixão que o destruiu. Penso até hoje que talvez as marcas desse passado tenham reflexos nos caminhos errados que por vezes ele toma. A "carta de Kasyade" ainda é uma lembrança dolorida pra mim. A despedida dele doeu demais. É dificil entender quando alguém que amamos decide que não quer mais estar aqui. E desde então eu falei pouco sobre ele. Na verdade, quase ninguém fala sobre ele. As pessoas ao nosso redor preferem não citar muito o acontecido. Mas ele voltou, afinal, é um anjo e Deus o odeia. Não deixaria que a morte o levasse e que ficasse tudo bem.
-Tá tudo bem? Perguntou Ramtel
Meus pensamentos acelerados e a ansiedade me seguraram nessa linha de pensamento infinita que acabei de contar por algo em torno de vinte segundos e provavelmente minha cara era algo parecido com uma paisagem ou uma televisão fora do ar.
-Tá... Tu sabes de toda a história, pelo visto, não?
Droga, eu preciso contar a história, se não vai ficar subentendido.
Mitologia e Religião se misturam em alguns pontos, Ramtel me explicou uma vez, mas algo que não nos contam é que na verdade alguns humanos são fragmentados. É um tanto quanto complexo e quando ele citou isso eu não tinha nenhuma fonte para pesquisar e nem quis... Até entender na pratica, conhecendo Kasyade.
Humanos fragmentados não são "humanos que estão pela metade" como parece pelo nome. É algo como se houvesse uma extensão de nós em algum outro lugar e é uma extensão não romântica. Minha extensão, na verdade, meu outro eu, sempre foi Kasyade. Desde o começo. Desde o fim. Deus odeia nós dois. Nossas mortes são invalidadas e nossas punições são mais dias de vida. Nosso sofrimento é parcelado e ainda acrescido de juros. Kasyade é como aquela história de que há, no mundo, uma pessoa igualzinha a nós.
E ao final disso tudo, Ramtel não veio falar sobre Kasyade. Ele veio falar sobre mim, pois sabia que mais uma vez eu queria desistir. E se não eu, será Kasyade. Sempre é um de nós dois, porque infelizmente somos um.
História de Ramtel e Kasyade
Comentários
Postar um comentário