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Os riscos de uma relação

    O namoro era tão bom. Quando foram morar juntos tornou-se mais perfeito ainda. Um ajudava o outro a limpar a casa, cuidar das despesas e principalmente a cuidar de si próprios. Todas as noites tinham um ao outro de uma forma intensa e livre. Vez ou outra saiam e iam na casa dos pais jantar ou até mesmo naquele fast food da primeira quadra já que nenhum dos dois bebia. Deitavam-se, olhavam filmes e davam risada. Jamais haveriam coisas ruins entre eles. Tudo era para sempre.
    E depois de um ano as coisas começaram a ser diferentes. Ela sentia que estava fazendo algo errado mas realmente não entendia, não via o erro. Todas as noites era a mesma coisa. Todas as noites ele tomava um copo de conhaque e sentia-se satisfeito. Todas as noites ela sentava ao lado dele e clamava ao menos por um pouco de carinho e não um "a casa está suja, não viu?" enquanto ele pedia por uma janta decente e a mandava sair de frente da televisão.
    Ela realmente odiava isso mas hoje sente falta das palavras rudes e dos maus tratos verbais leves. Sente falta também de quando era apenas um copo de conhaque por noite. Pelo menos ainda conseguia sentir que, no fundo devia ter alguma esperança e de que ele ainda estava ali com ela. Mas...
    Hoje. Bom, hoje ele toma alguns copos, um fardo de cerveja e fuma um maço de cigarros baratos. Hoje ele não suporta a presença dela e silencia sua voz com um tapa sempre que ela deseja algo. Ela apenas baixa os olhos e chora mas ele parece se irritar com suas lágrimas então bate mais e mais nela. Todos os dias ela chega com um machucado novo no trabalho e mente à todos que não sabe onde foi aquilo e que desconfia ser sonâmbula. Ela acredita que ele vai mudar.
    Uma noite dessas, ela chegou em casa 15 minutos atrasada. Ele a esperava na porta com sangue nos olhos e ela não teve reação alguma antes do mundo simplesmente escurecer e ela acordar algum tempo (ninguém sabe quanto) depois. Viu que ele quebrou a garrafa de cerveja em sua cabeça e não entendeu. Eram só 15 minutos. Ele não conteve a raiva mais uma vez. Estava fora de si e dessa vez ela viu um pó branco e algumas notas de 2 reais enroladas. Viu copos quebrados e um sutiã que sabia... não era seu. Mas ela não queria estragar o que havia preparado.
    Simplesmente... Ele a pegou pelo pescoço com uma raiva e força que ela jamais conhecera e bateu forte sua cabeça. A raiva havia tomado conta dele e ela não conseguia... não sentia mais... não haviam mais forças para respirar. Ele pegou sua bolsa e tirou camisinhas, viu um batom novo e o dinheiro que deveria estar ali, havia menos da metade. Voltou a bater nela e pronunciava palavras horríveis. Chamava-a de coisas que sabe-se lá Deus se já ouvira. Colocou a alça da bolsa em torno de seu pescoço e com a raiva começou a apertar e chama-la de vagabunda, traíra e sem vergonha. A cada minuto apertava mais e mais até que viu sangue em suas mãos. Até que viu um rosto roxo e um corpo frio. Até que a bolsa caiu no chão e um par de alianças novas com um "Feliz aniversário de namoro. Te amarei até o final de minha vida e ainda acredito que há um homem bom dentro de ti."
    Quem ele havia se tornado? Já era tarde demais para mudar agora.

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