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Ah, como eu o entendo bem

    Nasceu prematuro, coitado! Além disso, o garoto também andava cansado de todos os dias ser o saco de pancadas de gente fútil na escola, na família e por onde quer que passasse. Ele não precisava simplesmente ser agredido fisicamente, já que as palavras o machucavam muito mais. Ah, como eu o entendo bem.
    Quando seus medos internos e os monstros que o cercavam permitiam que dormisse, era por volta das quatro horas da manhã, ou seja, poderia dormir até as seis e meia se desse sorte de conseguir arrumar-se correndo para mais um dia torturante. Bom, lá vai... Lavava o rosto, tomava uma porção de remédios, vestia a máscara de felicidade, pegava a mochila e ia. Todos os dias esquecia a caneta, um caderno ou um livro importante mas acabava pedindo para algum colega, já que geralmente tinha um bom relacionamento com as pessoas ao seu redor. Afinal, ninguém ali sabia quem ele realmente era ou o que realmente se passava ali dentro.
    "Malditos medicamentos! Eram para ter algum efeito" ele sempre dizia, já que nada fazia efeito, nada afastava dele as crises, as dores, as alucinações em sua cabeça. Ninguém conseguia entender porque ele mudava tão depressa assim na escola ou porque simplesmente ia correndo ao banheiro. As pessoas só sabiam rir quando ele faltava alguma aula importante ou via que não conseguiu prestar atenção em algo.
    Doía todos os dias, todas as brigas e discussões, todas as mágoas e ilusões que passava. Ah, como eu o entendo bem. Ver que poderiam haver mil pessoas ali e isso só faria com que ele se sentisse pior, mais vazio, mais anormal e mais inútil. Ele redescobriu algo para fazer com que a dor diminuísse. Para fazer com que o físico importasse mais do que o emocional, mas no final de tudo ele anda afetando as duas partes sem conseguir curar nenhuma, sem conseguir sair disso tudo em que se meteu.
    Sorrir para todo mundo vem ficando mais difícil, não é, amigo? É mais difícil responder um "tudo bem" mas ainda é melhor do que falar como andam as coisas e ouvir todas as pessoas dizerem "Já passei por coisas piores, vai passar" ele sabe que vai passar, até aprendeu a rezar por isso. Mas será que vai demorar? Talvez ele já até tenha desistido o dia em que as marcas do seu corpo começarem a ter ciumes das marcas novas, das mágoas novas, das dores novas. Talvez o corpo dele se revolte com aqueles medicamentos e resolva mandar o coração parar de trabalhar.
    Ah, como eu o entendo bem.

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